Turismo no território de Lisboa – a base de todas as opiniões

As actividades da indústria do turismo em Lisboa têm limitada implantação espacial nos 87.74 km2 da cidade. Nada de original nem de extraordinário. Turismo e outro espaço urbano ocupam cerca de 200 km2 nos 5.000 km2 do Algarve e encontramos o mesmo padrão em outras cidades do mundo.

Em nossa opinião, toda e qualquer opinião sobre o turismo em Lisboa deve assentar em base territorial explícita, de preferência com definição formal. Na maior parte dos casos, ignorar esta regra desqualifica a opinião.   


Explicaremos isto e muito mais na série de posts de que este é o primeiro. A base analítica dos posts é o documento “Informação útil a quem opina sobre turismo e Lisboa” (aqui), Princípios Gerais do blogue, de leitura que recomendamos (http://sergiopalmabrito.blogspot.pt/p/apresentacao.html).


1.Lisboa

*Concelho de Lisboa
Lisboa tem 87.74 km2 de superfície. Em 2011 tem 548 mil habitantes, 238 mil alojamentos de residência habitual, 35 mil de residência secundária e 50 mil vagos. Um olhar sobre o mapa da Cidade com ‘novas freguesias’ dá-nos primeira ideia de quão vasta é a área em que não vislumbramos turistas e de quão limitada é a que mais directamente os recebe (figura 1).

Figura 1 – Cidade de Lisboa



*Urbe Histórica de Lisboa
Sem museu, monumento ou atracção que a afirmem como destino turístico, a diferença da oferta de turismo de Lisboa reside no que nós façamos na extensa faixa de Urbe Histórica, que se estende sobre colinas e ao longo do Tejo, nos cerca de doze quilómetros de Belém ao Beato.

A Urbe Histórica tem limites difusos, mas é parte da percepção que os turistas têm de Lisboa, antes de se familiarizarem com nomes como Alfama, Castelo, Bairro Alto e por aí adiante (1).

Muito do futuro do turismo na cidade de Lisboa depende da nossa capacidade em intervir a Urbe Histórica, de modo a

-conciliar as exigências do desenvolvimento da industria do turismo com a salvaguarda dos valores da cidade, da sua gente e do seu património,

-identificar os pontos de tensão neste conciliar de exigências, para intervir localmente no âmbito de estratégia consensualizada [ver ponto2].

A grande maioria de críticas ao turismo em Lisboa e as respostas que exigem têm a ver com Urbe Histórica. Para as analisar, temos de considerar espaços formais: Centro Histórico e Zona crítica de despovoamento de Lisboa

*Centro Histórico de Lisboa
No seio da Urbe Histórica, o Centro Histórico de Lisboa ocupa 16,15km2 e tem 110.792 habitantes em 2011. Tem definição administrativa e ocupa seis das ‘novas freguesias’ (2).

A experiência mostra que o Centro Histórico não é significativo para a relação entre território e turismo na Urbe Histórica de Lisboa:

-inclui freguesias antigas cujo território não é sede de problemas relevantes entre turismo e residentes,

-não inclui toda a área de Belém e Ajuda,

-a ATL acaba de definir no seu seio três novas microcentralidades turísticas, abandonando a referência genérica a Centro Histórico. [ver ponto2].

*Zona crítica de despovoamento – definição
Somos obrigados a definir um espaço formal que nos permita analisar as dinâmicas de despovoamento e de desenvolvimento do turismo no seio da Urbe Histórica de Lisboa e comparar com zonas similares de outras cidades. Esta é a origem da Zona crítica de despovoamento de Lisboa, formada pelo conjunto das vinte e uma freguesias nas quais a população residente diminui mais de 65% entre 1960/2011 (gráfico 1) (3). Esta zona

-é o coração da urbe histórica, ocupa 4,88Km2 e tem 44.482 habitantes em 2011, ou seja 5,9% da área de Lisboa e 8,1% da população,

-é definida a partir de critério estatístico e administrativo, mas ocupa um espaço urbano coerente.

Gráfico 1 – Zona crítica - variação da população residente 1960/2011 (%)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da População

Registamos que três freguesias perdem mais de 80% da população entre 1960/2015 e, arredondando a unidades, oito perdem 75% ou mais.

*Zona crítica de despovoamento no território da Cidade
A Zona crítica de despovoamento

-exclui freguesias do Centro Histórico de Lisboa: Santa Isabel e Santo Condestável (Campo de Ourique), Lapa e Prazeres (Estrela), Penha de França e S. João (Penha de França), Graça e Santa Engrácia (São Vicente)

-inclui freguesia fora do Centro Histórico: Pena (Arroios), Coração de Jesus e S. José (Santo António),

-inclui 18 freguesias do Centro Histórico: Castelo, Encarnação, Madalena, Mártires, Mercês, Sacramento, Sta. Catarina, Sta. Justa, Santiago, Sto. Estêvão, Santos-o-Velho, São Cristóvão e São Lourenço, São Miguel, São Nicolau, São Paulo, São Vicente de Fora, Sé e Socorro,

-forma um território contíguo e coerente, susceptível de ser individualizado (figura 2) – observação a ser feita no site https://www.viamichelin.pt/.

Figura 2 – Zona crítica de despovoamento Lisboa – 21 freguesias ‘antigas’


Fonte: Elaboração própria com base em https://www.viamichelin.pt/

*Zona crítica de despovoamento e debate sobre turismo em Lisboa
Partimos da observação e da estatística e acabamos por definir uma Zona que integra as freguesias de Sta. Maria Maior e Misericórdia, mais a de Santo António, esta com excepção da freguesia antiga de S. Mamede, na qual a população diminui ‘apenas’ 61% entre 1960/2011. 

A Zona crítica de despovoamento de Lisboa

-coincide grosso modo com o das três microcentralidades turísticas definidas pela ATL – Associação Turismo de Lisboa [ver ponto 2],

-concentra muita das actividades turísticas, nomeadamente pouco menos de 62.7% do total de apartamentos de Alojamento Local registados no RNAL em 31 Dezembro 2016 (gráficos 2 e 3),

-permite comparar a sua população com a da Città Storica de Veneza ou da Ciutat Vella de Barcelona, como veremos em posts futuros.

Gráfico 2 – Registos de apartamentos de AL em Lisboa por freguesia


Fonte: Elaboração própria com base em Registo Nacional do Alojamento Local (RNAL)

Gráfico 3 – Registos de apartamentos de AL no TOP6 freguesias percentagem


Fonte: Elaboração própria com base em Registo Nacional do Alojamento Local (RNAL)

Estamos perante exemplo da concentração de actividades turísticas em três freguesias que são nova realidade na governança do turismo em Lisboa.


2.Turismo no território de Lisboa

*Microcentralidades turísticas de Lisboa
O Plano Estratégico Para o Turismo da Região de Lisboa 2015/2019 (4) “revê as microcentralidades da cidade de Lisboa adequando-as à nova realidade”:

-separação do Centro Histórico em três novas microcentralidades: ‘Bairro Alto, Cais do Sodré e Santos’, ‘Baixa-Chiado’, ‘Alfama, Castelo e Mouraria’,

-criação de uma nova microcentralidade: Marquês de Pombal e Av. da Liberdade, reconhecendo a sua relevância como destino de shopping e de negócios;

-microcentralidades de Belém, Parque das Nações e Eixo Ribeirinho mantêm as actuais fronteiras (figura 3).

Figura 3 – Redefinição das microcentralidades do turismo em Lisboa


Fonte: Elaboração própria com base em Plano Estratégico Para o Turismo na Região de Lisboa

*Há turismo em Lisboa para além da Zona crítica despovoamento
Lisboa é cidade moderna e ligada ao Tejo. Outras microcentralidades turísticas destacam

-o Eixo Ribeirinho que acompanha e integra a Urbe Histórica, mas que vai mais para além, até ao Parque das Nações,

-Avenida da Liberdade que liga Urbe Histórica a um dos business districts,

-Belém, que inclui Ajuda, na Urbe Histórica,

-Parque das Nações em si e pelo Oceanário com mais de um milhão de visitas.

*Concentração de actividades turísticas e pontos de tensão
As actividades turísticas tendem a concentrar-se na cidade, em resultado do espírito gregário dos humanos, de aparente racionalidade económica (Bairro Alto), ou de localização de atracções (Belém).

A frente Tejo, Belém ou Praça do Comércio são zonas de concentração de turistas que, pela sua extensão e paisagem com o Tejo diferenciam positivamente Lisboa – não temos o equivalente do excesso de visitantes na praça de S. Marcos em Veneza.

Diferente é o caso de pontos de tensão entre turismo e residentes. Com mais de 1.7 milhões de visitantes e as ruelas na envolvente, o Castelo de S. Jorge é/será ponto de tensão. Ainda assim abaixo da Sagrada Família que, num quarteirão da malha urbana de Barcelona recebe mais de 3.7 milhões de visitas por ano.

Zonas de concentração de actividades turísticas e pontos de tensão entre turismo e residentes exigem gestão local integrada em modelo de desenvolvimento consensualizado.

3.Referências vagas ao turismo no território

*“Dez teses sobre o centro histórico de Lisboa”
O geógrafo João Seixas é professor auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e foi coordenador da equipa para a Reforma Administrativa da Cidade. Na quinta tese das dez sobre “o centro histórico de Lisboa” e em artigo muito assertivo no Publico, refere o crescimento da população [sublinhados nossos]:

-“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas.”, “confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano.”.

Depois,

-“instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo,” (5).

Em poucas linhas o autor refere centro histórico e cidade (duas áreas definidas mas bem diferentes) e centro urbano, área sem definição rigorosa. Esta mistura não permite a leitura rigorosa do texto.

A seguir o autor refere a perda de habitantes pela cidade desde 2013 e

-dá a ideia que esta alteração ao nível da Cidade resulta da dinâmica do turismo no centro histórico ou centro urbano, o que é um exagero,

-parece ignorar que a diminuição de população residente resulta erro do modelo estatístico do INE, como explicamos no post sobre População.

*“pressão que o turismo exerce nas cidades”
Voltamos a João Seixas, agora em declarações ao Expresso:

-“[João  Seixas] fez as contas e chegou à conclusão de que o rácio de turistas face ao número de residentes, um indicador para a pressão que o turismo exerce nas cidades, “é um dos maiores da Europa”: “Peguei nos dados de 2014: Barcelona teve 7,9 milhões de visitantes e uma estada média de 2,9 dias. Multiplique [dá 22,91]. Esta cidade tem 1,6 milhões de residentes. Dividindo, temos um rácio de 14,3. E Lisboa teve nesse ano 4,9 milhões de visitantes com uma estada média de 2,4, para 550 mil residentes. Dá um rácio de 21,4. E se fizermos estes cálculos apenas para os residentes das zonas mais turísticas e históricas, o rácio fica mais acentuado. É um ‘indicador sintético’, de análise, mas relevante.” (6).

O rácio utilizado por João Seixas não é o de turistas/residentes mas sim o de dormidas na hotelaria/residentes, mas não é isso que está em causa. Ser um ‘indicador sintético’ é, e em casos muito especiais dá indicação útil. Relevante, não é, porque é arcaísmo sem base científica e esgotado na década de 1980. Basta pensar na escala do espaço a que se aplica e na integração deste espaço no território.

Este ratio pode ser utilizado na concepção de resorts que combinem residência permanente e alojamento turístico, mas é tudo.

O ratio é de facto um indicador sintético, mas da impotência de cientistas que fazem uma abordagem superficial de dinâmica económica, social e urbana na formação da economia do turismo.

4.Nota final

Certamente por falha nossa, não conhecemos texto que formalize o conhecimento sobre o turismo na cidade a partir da observação e análise da realidade no terreno.

Zona crítica, áreas de concentração e pontos de tensão são noções que criámos a partir da observação do turismo em várias cidades do mundo e leitura de livros do período da geografia de Orlando Ribeiro. 


A Bem da Nação

Lisboa 23 Fevereiro 2017

Sérgio Palma Brito


Notas

(1)No branding de destinos turísticos, Simon Anholt utiliza o caso da caixa de chocolates. Num mercado em que apenas a marca Lisboa tem notoriedade, o destino é Lisboa. Quando Lisboa já é conhecida, as microcentralidades passam a poder ter identidade própria mas sempre ligada à de Lisboa.

(2)Estrela, Campo de Ourique, Misericórdia, Santa Maria Maior, Penha de França e São Vicente.

(3)Deixamos ao leitor a possibilidade de fixar o limite inferior da diminuição de população. Se for em 60%, e não 65%, aumenta a Zona crítica em mais oito freguesias.

(4)Ver Associação Turismo de Lisboa, Plano Estratégico Para o Turismo da Região de Lisboa 2015-2019, Lisboa 2014.

(5)Ver 2016.08.08 Publico, Dez teses sobre o centro histórico de Lisboa

(6)Ver 2016.12.23 Expresso, O novo fado de Lisboa


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