O Algarve às Sextas (2012.02.24)
Zonas Urbanas de “valor histórico, ambiental e paisagístico” – 1934/1974

No percurso sobre o Plano Regional do Algarve, ocupamo-nos da “Defesa de localidades e zonas de agregados urbanos de particular valor histórico, ambiental e paisagístico”, na objectiva expressão do documento fundador de Janeiro de 1964.

 As “zonas” têm “particular valor”, mas podem ser parte de agregado urbano de edificações muito pobres e com valor para a Etnologia (cabanas de colmo). Na actualidade, esta realidade é sublimada com referências ao “património” de agregados como Quarteira e Monte Gordo.



a)Edificação e Planeamento Urbanos (1934/1971)


Þ     Planeamento Urbano de Escala Local

O primeiro quadro legal do planeamento urbanístico é formado por três diplomas, aprovados em 1934, 1944 e 1946 (1). Os Decretos-Lei de 1934 e 1944 são praticamente idênticos em obrigar as Câmaras Municipais a elaborar Planos Gerais de Urbanização das sedes dos seus municípios e em estender esta obrigação aos “centros urbanos ou zonas de interesse turístico, recreativo, climático, terapêutico, espiritual, histórico ou artístico designados pelo Governo em relação a publicar pelos Ministérios do Interior e das Obras Públicas e Comunicações.”.

  O Artigo Único do Decreto-Lei de 1946 dispõe, nomeadamente:

 “Os anteplanos de urbanização aprovados pelo Ministério das Obras Públicas e Comunicações sobre parecer do CSOP serão obrigatoriamente respeitados em todas as edificações, reedificações ou transformações de prédios e no traçado de novos arruamentos nas áreas das sedes de concelho e demais localidades ou zonas por eles abrangidos”.

A realidade é diferente: “o MOP aconselhava verbalmente as câmaras municipais a não passarem ao estudo da última fase dos planos gerais de urbanização. Na prática, esta orientação significativa que o anteplano deixava de ser uma fase intermédia, transformando-se na finalidade prosseguida pelos estudos urbanísticos...” (2) (Gonçalves, 1989: 245). Com o Decreto-Lei de 1944 em vigor, “nem um único regulamento foi publicado”.



Þ     1951: Regulamento Geral das Edificações Urbanas

O RGEU (3) abrange as edificações e obras “dentro do perímetro urbano e das zonas rurais de protecção fixadas para as sedes de concelho e para as demais localidades sujeitas por lei a plano de urbanização e expansão”.

Para estas edificações exige, “prévia licença das câmaras municipais, ás quais incumbe também a fiscalização do cumprimento das disposições”,

Dispõe que “As câmaras municipais não poderão conceder licenças para a execução de quaisquer obras sem que previamente verifiquem  que elas não colidem com o plano de urbanização geral ou parcial aprovado para o local ou que, em todo o caso, não prejudicam a estética urbana.”.

 Se o espírito e a letra das numerosas disposições do RGEU tivessem sido respeitados, as nossas vilas e aldeias seriam hoje diferentes.

A realidade é diferente e aceite, pois

·          a politica oficial é de não aprovar e fazer respeitar os Planos de Urbanização, gerais ou parciais,

·          não é raro que “a C. Municipal, apesar de todas as advertências escritas e verbais, continua a autorizar construções que não respeitam o RGEU” (4).

  

b)1964: Capacidade de Auto Crítica


Þ     O Ano de 1964

A fase inicial do Plano Regional do Algarve coincide com o Trabalho Preparatório do que vem a ser o Plano Intercalar de Fomento para 1965/1967. Num curto espaço de tempo, são elaborados documentos que revelam uma qualidade, visão e capacidade crítica que surpreendem.

No balanço de 1964 (5), há uma ligação entre o passado recente e futuro:

·          “Em resumo, há que considerar as boas intenções que presidiram à introdução do planeamento físico no nosso País – numa época em que nada estava feito nesse campo – e os esforços que têm sido feitos desde há vinte anos, e que recentemente se intensificaram com o estudo dos primeiros planos ao escalão regional, não têm podido dar resposta às grandes necessidades que se têm posto neste campo – e isto, não só por limitações próprias dos planos, mas sobretudo por falta de uma estrutura politico administrativa adequada.”.

Esta redacção já tem em conta o “crescimento desmesurado do aglomerado suburbano de Lisboa, verificado no último decénio” [década de 1950].



Þ     Incapacidade de Regulação Pública da Iniciativa Privada

Em 1964, o balanço é elucidativo:

“Apenas sujeita ao RGEU (geralmente sem fiscalização efectiva) e a planos de urbanização quase sempre parcelares e improvisados (quando os há), a iniciativa privada, responsável por mais de 90% das habitações que se constroem, opera em condições paradoxalmente contraditórias: ora enfrentando toda uma série de dificuldades e inúteis formalidades, ora trabalhando num regime de plena licenciosidade e anarquia. Deste modo se têm criado problemas urbanísticos de extrema gravidade ou se tem construído sem atender às reais necessidades da população e aos requisitos de ordem técnica e económica no sentido de um adequado rendimento dos investimentos realizados.”.



Þ     Manipulação Privada do Planeamento Urbanístico

Ainda o Balanço de 1964,

·          “constata-se que aqueles planos de urbanização que visaram, antes de mais, a compreensão e acautelamento dos interesses da colectividade encontraram, por via de regra, as maiores dificuldades na sua execução (quando não ficaram no papel ou foram paralisados) enquanto que, em contrapartida, os planos que serviram declaradamente intuitos lucrativos por parte de particulares, ainda que colidindo com os interesses gerais, foram tomando forma, definindo assim, pouco a pouco, a feição da nossa ocupação territorial.”.



Þ    A Ilusão dos Bons Planos

Uma última citação:

 “vai-se alimentando, em termos enganosos que representam uma alienação das condições reais da prática do urbanismo no nosso meio, o mito da suficiência dos bons planos, ou seja, planos correctamente executados segundo os cânones da técnica urbanística, remetendo-se, deste modo, para bases puramente tecnológicas problemas fundamentais, que ultrapassam largamente o âmbito restrito a que se pretende circunscrevê-los e no qual, necessariamente, não poderão encontrar solução.”.



b)Plano Regional do Algarve: “Defesa de localidades e zonas de agregados urbanos de particular valor histórico, ambiental e paisagístico”


Þ     Documento de Janeiro de 1964 e Relatório de Maio de 1964 (6)

O documento de Janeiro de 1964 é redigido pela equipa de Luigi Dodi, ocupa-se da orla costeira do Algarve e não considera a fraqueza estrutural da aplicação do RGEU e do Planeamento Urbanístico de Escala Local.

O Relatório de Maio de 1964 reconhece a justeza do critério geral, mas

·          “outrotanto não será possível afirmar quanto à extensão da sua aplicação, sempre sujeita a vozes discordantes”,

·          “é matéria a desenvolver em maior pormenor noutra fase mais evoluída do estudos”.

Por fim, uma constatação:

·          “Todas estas disposições envolvem limitações indispensáveis à utilização dos terenos, quer urbanos quer rurais, conduzindo, por exclusão, a uma selecção dos que podem ser aproveitados para instalação de núcleos turísticos-residenciais e para expansões urbanas, sem prejuízo de valores naturais ou de criação humana a respeitar.”.



Þ     Abril de 1965: Acção da DGSU

Em 5 de Abril de 1965, o Director Geral da DGSU elabora uma Informação “A sua Excelência o Ministro, acerca do desenvolvimento dos Estudos Complementares do Plano Regional do Algarve”. Citamos:

“Os 4 estudos sub regionais a executar na orla costeira terão de ser acompanhados, obviamente, pelo estudo, especial, de salvaguarda e valorização da paisagem urbana existente, quer no espaço de valores, individuais, arquitectónicos, plásticos, monumentais, culturais ou históricos, quer no aspecto de “conjuntos” a classificar, preservar e beneficiar.

Deste modo, far-se-ão paralelamente o estudo o estudos dos actuais núcleos urbanos, que sempre serão o “suporte” daqueles e proporcionarão o desfruto da arquitectura e do ambiente tradicionais, no que eles têm de mais típico e de mais puro.

A imediata catalogação e classificação dos imóveis e dos conjuntos a preservar e eventualmente beneficiar, - assegurarão a conservação dos poucos “valores” que há no Algarve e que de outro modo se perderão irremediavelmente, na onda de valorização especulativa que nada respeita.

Este estudo, designará, automática e simultaneamente, as zonas dos aglomerados onde é possível a renovação urbana, para natural e conveniente valorização do terreno. Para a sua elaboração obtive a aquiescência dos Arquitectos Cabeça Padrão e Campos Matos”.

Esta é a integração do trabalho dos Arquitectos Cabeça Padrão e Campos Matos no Plano Regional do Algarve e dele é indissociável.



Þ     Contexto Politico e Administrativo do Estudo

Em Abril de 1965, o Director Geral da DGSU é das pessoas que melhor conhece

·          as insuficiências do REGEU e do Planeamento Urbanístico,

·          a inexistência da Politica de Solos de que o País carece e o evidente falhar de todas as propostas do Plano Regional do Algarve,

·          a força da procura por edificação nos Aglomerados e Zonas a defender,

·          a dificuldade politica e administrativa em implementar as medidas de defesa e valorização que os dois arquitectos iriam necessariamente propor.

Contrariamente a Maio de 1964, na Informação anexa ao Relatório do Plano Regional do Algarve, não explicita a necessidade de intervenção legislativa que enquadre o Estudo de Cabeça Padrão e Campos Matos.

Visto à distância, o Estudo estava, desde logo, condenado à sorte que teve: ser ignorado e esquecido.



Þ     Actualidade da Cortina de Silêncio

Consagrámos muito tempo e esforço a recolher informação sobre a formação da relação entre Território e Turismo no Algarve. Entre Arquivos, arquivo morto, contributos de amigos e desconhecidos, conseguimos recriar o quadro geral do Plano Regional do Algarve e ter informação útil a comunicar. O Estudo de Cabeça Padrão e Campos Matos foi a excepção: só obtivemos referências dispersas e fotocópia do estudo de Faro.

Em 2011, o Museu Municipal de Arqueologia de Albufeira acolhe uma exposição “de fundos documentais e espólio fotográfico relativos ao trabalho pioneiro que o arquitecto Cabeça Padrão realizou em Albufeira, no ano de 1966”. A exposição é fruto da iniciativa da Arquitecta Isabel Valverde (7), que “chegou” a Cabeça Padrão e a uma boa parte do seu espólio.

A Cortina de Silêncio que, com a Democracia, cai sobre o Plano Regional do Algarve, manifesta-se, em Albufeira, por um desencontro:

·          o nosso  trabalho sofre pela falta de acesso a informação sobre um dos três grandes Estudos Complementares do PRA,

·          à Exposição falta enquadrar o Estudo no Plano Regional do Algarve, de que é elemento importante e indissociável.



c)Legislação de 1970/1971 e Sua Aplicação


Þ     A Legislação

A legislação de 1971 (8) define Planos Gerais e Parciais de Urbanização e Planos de Pormenor. As Câmaras Municipais devem elaborar PGUs de

·           “localidades e das zonas de interesse turístico, recreativo, climático, terapêutico, espiritual, histórico ou artístico designadas pelos Ministros do Interior e das Obras Públicas”,

·          “áreas territoriais em que a estrutura urbana justifique planos de conjunto abrangendo vários centros urbanos e zonas rurais intermédias ou envolventes.”.



Þ     Aplicação da Legislação

  A aplicação da Legislação de 1971 ao Algarve mostra uma demissão do Governo e da Administração:

·          em 1972, o relançar do Planeamento Sub Regional esbarra em Ministros que recusam tomas as medidas propostas pelos técnicos,

·          entre 1979 e 1985, o Plano Geral de Urbanização da Área Territorial do Algarve é um mero exercício de Gabinete.

·          entre 1979 e 1985, os inventários dos Planos em Elaboração confirmam a falta de ímpeto, na intervenção de Governo, Administração e Autarquias,

·          durante os 19 anos que vão de 1971 a 1990, são aprovados, no Algarve, três Planos: Lagos, Meia Praia (não eficaz) e Zona Nascente de Quarteira.



d)Nota Final


Þ     Investigar e Estudar?

O acervo disponível sobre o Estudo de Cabeça Padrão e Campos Matos justifica investigação e estudo sobre, pelo menos, dois aspectos:

·          a inserção deste Estudo na evolução das propostas sobre Defesa e Valorização da Paisagem Humana,

·          um mais político, que implica conhecer o como e porquê o Estudo é ignorado por Autarquias, Serviços de Urbanização, Ministro e Elite Regional,



Þ     Actualidade da Defesa de Zonas Urbanas de Valor Histórico, Cultural e Paisagístico

Podemos comemorar os Cinquenta Anos do Plano Regional do Algarve, procurando dar resposta a duas perguntas:

·          como garantir, na actualidade, a “Defesa de localidades e zonas de agregados urbanos de particular valor histórico, ambiental e paisagístico”?

·          quem Assume a Responsabilidade de fazer e implementar este Estudo  e quem Presta Contas, depois de o ter feito?



Sérgio Palma Brito

Algarve 24 de Fevereiro de 2012

2012.02.24.Algarve.Sexta

Referências

 (1)Decreto-Lei n.º 24.802, de 21 de Dezembro de 1934; Decreto-lei n.º 33.901, de 5 de Setembro de 1944; Decreto-Lei n.º 35.931, de 4 de Novembro de 1946; ver o Decreto nº21.697, de 17 de Setembro de 1932, que incumbe a DG dos Edifícios e Monumentos Nacionais da elaboração de programas de urbanismo de acordo com as entidades locais

(2)Fernando Gonçalves, Evolução História do Direito do Urbanismo em Portugal - 1851-1988, Instituto Nacional de Administração, O Direito do Urbanismo, Lisboa, 1989, p.245

(3)Aprovado pelo Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951

(4) “Relatório da visita de fiscalização realizada em 8 de Julho de 1960” ao “Ante-plano de urbanização de Lagos”

(5)As citações têm a mesma fonte: Presidência do Conselho, Relatório Preparatório do Plano de Investimentos para 1965-1967, Relatório do Grupo de Trabalho nº 7, Mão-de-obra e Aspectos Sociais, Volume II, Parte III Habitação, Lisboa, 1964

(6)Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, Respectivamente: Planeamento Urbanístico da Região do Algarve “Esboceto da Faixa Marginal”: Janeiro de 1964 e Planeamento Urbanístico da Região do Algarve, Relatório do Gabinete Técnico do Plano Regional do Algarve, Maio de 1964

(7)Gabinete de Recuperação Urbana de Albufeira e docente no ISMAT – Instituto Manuel Teixeira Gomes, de Portimão
(8)Decreto-Lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro e Decreto n.º 561/71, da mesma d

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